Com vacinação eficiente, Chile vira ‘observatório’ para recuperação econômica do Brasil

Notícias | 14/05/21

Por Raphael Martins, G1

Com campanhas de vacinação contra a Covid-19 em andamento em praticamente todo o mundo, os olhos se voltam agora aos indícios de retorno à normalidade. Para economistas, isso significa saber quando será possível uma volta segura ao trabalho, um crescimento da atividade econômica e volta ao patamar de criação de empregos.

Para lamento dos brasileiros, quem deve capitanear esse processo na América Latina é o Chile. Na região, é o país andino que tem a vacinação contra a Covid-19 em estágio mais avançado.

Até esta quinta-feira (13), 46,4% dos chilenos haviam tomado a primeira dose da vacina e 38,5% retornaram para a segunda rodada. Nesse ritmo, a meta do governo é ter 80% dos chilenos vacinados até junho.

O resultado se deve, principalmente, aos contratos firmados rapidamente pelo presidente Sebastián Piñera com uma porção de fabricantes de vacinas, antes mesmo do final de suas fases de teste. Essa antecipação fez o país ser atendido na frente dos demais latinos. O acordo com a Pfizer, por exemplo, foi firmado em setembro e o carregamento inicial de vacinas entregue em dezembro. O primeiro chileno estava vacinado antes do Natal.

Para economistas e analistas políticos consultados pelo G1, apesar de o Chile passar, no momento, por uma severa segunda onda de contágios, os próximos meses do país serão um excelente observatório para o planejamento do Brasil em sua saída da crise.

Além de o aumento de casos por lá demonstrar que medidas de contenção ainda serão necessárias por algum tempo, os dois países são dependentes do setor de serviços para a retomada do crescimento e grandes exportadores de commodities, que estão com preços em alta no mercado internacional.

Não bastasse, a vacina mais utilizada hoje no Chile é a dominante também por aqui: a CoronaVac, do laboratório chinês Sinovac. A efetividade da vacina no mundo real, portanto, também será acompanhada de perto pelos analistas brasileiros.

Vislumbre de normalidade

Há 11 anos no Chile, a advogada mineira Marcia Capanema vive o benefício de ter ao seu redor um plano de vacinação avançado. Aos 43 anos, ela recebeu a primeira dose da CoronaVac no dia 4 de maio. Seu marido, que pertence aos grupos prioritários do Chile, está vacinado com duas doses há 1 mês.

“A expectativa é retomar um pouco do convívio social com alguma segurança. Ir a um restaurante sem medo. Queria muito visitar meus pais, mas as viagens ao Brasil estão proibidas”, conta.

Na mesma semana em que ela começou sua imunização, a cidade de Belo Horizonte, onde nasceu, abriu a vacinação para quem tem 60 anos ou mais. Até esta quinta-feira (13), apenas 17,8% da população brasileira recebeu uma dose da vacina contra a Covid-19 e 8,8% foram imunizados por completo.

É certo que não se pode desconsiderar o abismo populacional entre Brasil e Chile, visto que a população de 19 milhões de habitantes andinos é equivalente a 8% da brasileira. Mas, na corrida percentual, fez diferença a atitude de cada governo frente às vacinas.

O Chile firmou acordos de testes (e posterior preferência de compra) com Sinovac, AstraZeneca, Janssen e CanSino. Além disso, fez compra antecipada de vacinas da Pfizer e entrou como parte do consórcio Covax Facility.

Até o início de maio, foram recebidos mais de 17 milhões de doses. Desses, 16 milhões foram aplicados. Ao todo, foram reservados mais de 90 milhões de doses, mais de quatro vezes a população chilena. Nesta sexta-feira (14), o país atinge a faixa de adultos maiores de 35 anos em seu plano de vacinação.

“O governo foi muito rápido em ouvir as universidades. Foram elas que intermediaram o contato com os fabricantes. Isso fez toda a diferença”, afirma Marcia Capanema.

Parcela percentual da população de cinco países que recebeu ao menos uma dose de vacina contra a Covid-19 — Foto: Arte/G1

O Ministério da Saúde do Brasil, assim como o Chile, permitiu a realização de testes no país, mas não converteu a experiência em contratos firmados antecipadamente. A aposta brasileira foi centrada na vacina da AstraZeneca, produzida pela Fiocruz, e na fatia que viria do consórcio Covax Facility.

Apenas em 2021 foram fechadas, por aqui, as compras de doses do Instituto Butantan, que produz a CoronaVac no Brasil, e da Pfizer, que teve seis ofertas ignoradas pelo governo em 2020. Em depoimento à CPI da Covid, o ministro Marcelo Queiroga disse que o país tem reservados 430 milhões de doses. Nesta terça-feira (11), o governo anunciou a compra de mais 100 milhões de doses da Pfizer.

Especialistas reiteram que o aparato do Sistema Único de Saúde (SUS) pode elevar bastante o ritmo de vacinados por dia assim que o Brasil tiver abastecimento adequado de doses. Mas, por ora, a previsão do Plano Nacional de Imunização é terminar os grupos prioritários apenas em setembro.

Crescimento econômico

O desenrolar da campanha de vacinação tornou inevitável o otimismo dos analistas. Para o Fundo Monetário Internacional (FMI), a retomada das atividades do Chile na segunda metade de 2021 possibilitará um crescimento de 6,2% da economia neste ano.

As projeções são em cima de uma queda de 5,8% do PIB chileno em 2020, maior que o do Brasil, mas ainda abaixo da média da região da América Latina e Caribe (7%).

No último relatório “World Economic Outlook”, o fundo afirma que a vacinação contra a Covid-19 é fator primordial para a recuperação da economia global, que deve crescer, em média, 6%. A expectativa do FMI é de que países emergentes retomem os níveis de PIB pré-pandemia em 2023. Os economistas consultados pelo G1 entendem que o Chile, em específico, deve chegar a esse patamar ainda neste ano.

O Brasil, por sua vez, tem previsões mais modestas. Depois da queda de 4,1% em 2020, a previsão do FMI para o país é de crescimento de 3,7% neste ano – e isso, se não houver grandes atrasos na vacinação. Em situação em que o plano de vacinação passe a acelerar, o FMI apontou que pode rever os números para cima.

Para Gustavo Arruda, economista-chefe para análise da América Latina do banco BNP Paribas, o Chile sai favorecido nessa corrida pela recuperação com base em uma combinação de três fatores: alta do preço de commodities importantes para o PIB do país, vacinação acelerada para normalização do setor de serviços e consumo, e espaço fiscal para novos estímulos.

O Chile é o maior produtor mundial de cobre, e o minério de exportação mais importante do país acumula alta de 105% em 12 meses, segundo medição da consultoria Economatica.

As commodities também beneficiam o Brasil. A alta de preços de produtos como petróleo, soja e minério de ferro é representativa, mas, segundo Arruda, em proporção menor que a do Chile. O cobre, sozinho, representa quase 50% das exportações do país andino.

O Chile ganha frente, de fato, com a vacinação e plano fiscal. Ao fim de 2019, a dívida pública chilena era de apenas 27,9% do PIB, muito abaixo dos vizinhos latinos. Em 2020, com a pandemia em cena, chegou a 32,5%.

No mesmo intervalo, o Brasil partiu de uma dívida de 74,3% para os 89,3% do PIB. A capacidade de criar novos estímulos à economia daqui em diante é limitada – a exemplo da retomada do Auxílio Emergencial em valores muito menores do que os R$ 600 de 2020.

“Claro que não é desejável aumentar o patamar da dívida, mas o Chile pode fazê-lo com alguma tranquilidade. O Brasil, não. Mesmo quando é necessária alguma expansão de gastos, há muito barulho e reclamação”, diz Arruda.

Estímulos chilenos

O patamar de dívida do Chile foi, de acordo com os economistas, um respiro que possibilitou o aumento do gasto público para demandas sociais com menor pressão em fundamentos de estabilidade macroeconômica, mantendo juros baixos e inflação sob controle.

“Foi a credibilidade do Banco Central chileno que proporcionou uma rápida diminuição dos juros do país, de 1,75% para 0,5% ao ano durante a pandemia, e a aprovação de estímulos diretos à economia”, diz o economista Felipe Klein, analista de Chile do BNP Paribas.

Além de uma redução especial de juros, o Chile seguiu a cartilha dos mais diversos países ao redor do globo: deu acesso facilitado a crédito e montou plano de transferências diretas de recursos. Jovens trabalhadores também tiveram reforço de renda.

Em medida semelhante ao Auxílio Emergencial brasileiro, o Chile criou o IFE (sigla em espanhol para “Ingresso Familiar de Emergência”), pago desde maio de 2020 e sem interrupção.

Ao longo do tempo, o alcance do programa foi ampliado. Atualmente, domicílios dentro dos 80% mais vulneráveis do país estão elegíveis ao benefício, mas o valor do repasse é focalizado e depende do número de moradores e da renda familiar, seja formal ou informal.

Há uma série de requisitos (inclusive de estágio epidemiológico e de isolamento necessário na região do beneficiário), que são reavaliados a cada parcela liberada. As faixas de pagamento aprovadas para maio vão de 100 mil a 759 mil pesos chilenos (entre R$ 740 e R$ 5,6 mil).

Em uma medida mais particular do país andino, foram autorizadas também três rodadas de saques de até 10% dos fundos de pensão. A medida foi proposta pela oposição no Congresso e chegou a sofrer represália do governo Piñera.

Desde os anos 1980, a aposentadoria no Chile é feita por capitalização privada, e o cidadão só tem acesso aos recursos ao cumprir os requisitos de inatividade. Apesar de uma reforma recente, a regra é amplamente contestada há anos, porque os recursos de aposentadoria vieram abaixo do necessário para manutenção do padrão de vida dos idosos.

A possibilidade de saque, portanto, foi tão bem aceita que o governo foi obrigado a ceder. Foram autorizadas rodadas entre junho de 2020 e abril de 2021.

“Foi uma medida muito popular, patrocinada pela oposição, e que teve um impacto enorme: despejou US$ 32 bilhões na economia, cerca de 7% do PIB chileno”, diz Klein, do BNP Paribas.

O Brasil aderiu a estímulos importantes, que não só seguraram a atividade como compensaram a perda de renda no país durante a crise. Além do Auxílio Emergencial, que despejou R$ 293 bilhões na economia e, segundo a consultoria Tendências, aumentou em 5,3% a massa de renda ampliada em 2020, o programa de preservação de empregos também teve serventia para segurar demissões.

O desarranjo fiscal, contudo, paralisou os programas sociais na virada do ano, afastou a reentrada de investimentos estrangeiros e manteve o real desvalorizado. O apetite por produtos mais baratos em dólar reforçou exportações, e gerou, aqui dentro, desabastecimento e inflação.

O Banco Central do Brasil passou a aumentar os juros, na necessidade de fazer frente ao aumento de preços – mesmo sem que a atividade econômica tenha retornado a patamares pré-crise. No último dia 5, o Comitê de Política Monetária realizou novo aumento da Selic, de 2,75% para 3,5%, segundo ajuste de 0,75 pontos percentuais para cima, com viés de nova alta.

Essas diferenças macroeconômicas foram mensuradas pelo economista-chefe da MB Associados, Sérgio Vale. Ele montou um “índice de vulnerabilidade” com dados do FMI e comparou 19 países emergentes.

Entre as variáveis estão o crescimento do PIB, inflação, nível de dívida bruta, superávit primário, desemprego, taxa de poupança e investimento, conta corrente e o crescimento das exportações. Do melhor para o pior, o Chile foi o 10º colocado. O Brasil, 17º.

O economista explica que a América Latina, como um todo, tem dificuldade de se transformar em um “continente poupador”, o que diminui a taxa de investimento interno. Mas o Chile tem como mérito uma condução linear da macroeconomia há muito tempo, o que lhe favorece na região.

“Governos de esquerda e de direita por lá não tomaram decisões equivocadas, o que dá previsibilidade ao investidor estrangeiro. Isso compensa em parte a falta de poupança, pois traz investimento externo”, diz Vale.

Governo enfraquecido

Antes da chegada da pandemia, o Chile passava por uma convulsão social em busca de reformas que combatessem a desigualdade. Desde o fim de 2019, protestos tomavam conta das ruas em busca de novas políticas que contemplassem demandas sociais.

Piñera, que inicialmente reprimiu as manifestações, viu sua popularidade derreter. No maior marco das mobilizações, o país aprovou em plebiscito a formação de uma assembleia para formular uma nova Constituição.

Como último recurso de redenção, o presidente chileno apostou na vacinação veloz como forma de dissipar a rejeição, recuperar a economia e reafirmar sua competência no combate à Covid-19.

Em certo sentido, deu certo. Depois do início dos protestos de 2019, a aprovação de Piñera caiu de 34% para 14% em menos de um mês, de acordo com a pesquisa Cadem/Plaza Pública. No início da gestão da pandemia, o número chegou a 29%.

Acontece que Piñera fez oposição a projetos populares, como do saque dos fundos de pensão, e (iludido com a falsa sensação de segurança dada pela vacinação) trabalhou por uma reabertura precoce da economia que causou uma explosão de casos no início de março de 2021.

Com o descuido no afrouxamento de regras sanitárias e a chegada de novas variantes do coronavírus, o país passou de uma média móvel de 2,2 mil casos por dia no fim de dezembro para um pico de 7,2 mil no início de abril, segundo dados do Ministério da Saúde do Chile. De 29% de aprovação que Piñera colhia na esteira das vacinas, o índice mergulhou para 9%. Na última sondagem, do dia 10, a chegada de mais doses das vacinas voltaram a favorecê-lo e o número subiu para 15%.

Para Leandro Lima, analista político de Chile da consultoria Control Risks, os momentos positivos da gestão chilena podem ser atribuídos ao fenômeno da ciência política chamado “Rally ‘Round the Flag” (do inglês, “volta em torno da bandeira”), em que a popularidade de líderes ganha tração por curtos períodos em meio a uma crise. A gestão do governo na pandemia, por exemplo, é apoiada por 41%.

“No longo prazo, não se acredita mais que o Piñera seja capaz de responder aos desafios que foram postos ao Chile. Apesar dos sucessos pontuais, há uma percepção de que ele não atende ao posto de líder de um país em reforma”, afirma Lima.

No Brasil, a imagem do presidente Jair Bolsonaro sofre abalos bem mais discretos. Segundo o instituto Datafolha, 51% dos brasileiros reprovam a atuaçãodo presidente na pandemia da Covid-19, mas 24% ainda acreditam que seu governo é ótimo ou bom.

“A CPI é muito perigosa por levantar informações que não estavam ao alcance do público, mas precisariam ser piores que o passivo alto da pandemia. O presidente mostrou já resiliência em período de muitas mortes e questionamento sobre atuação na crise”, diz Lucas de Aragão, sócio da consultoria Arko Advice.

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Fonte: G1