“Maior pecado no campo fiscal ainda é a falta de planejamento”

Artigos | 06/05/21

Por Solange Monteiro, do Rio de Janeiro

Felipe Salto, diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI)

Qual sua avaliação do arranjo final que permitiu a aprovação do Orçamento de 2021 respeitando o teto de gastos – levando em conta a diversidade de pressões observadas desde o ano passado, como a tentativa do Executivo de propor um novo programa de transferência de renda com recursos do Fundeb?

Em 2019, o governo apresentou a chamada PEC Emergencial, a partir de um diagnóstico sobre o teto de gastos: não seria possível rompê-lo, pela má redação da Emenda Constitucional nº 95/2016. Se o teto não poderia ser rompido, o acionamento das medidas automáticas de ajuste fiscal, conhecidas como gatilhos, ficaria inviabilizado. Daniel Couri, também da IFI, e eu produzimos uma análise a esse respeito para a Folha de S. Paulo. Argumentamos, ao lado de outros colaboradores, que a EC 95 poderia ser interpretada de maneira mais abrangente, distinta dessa visão que balizou a apresentação da PEC Emergencial. Mostramos que a lógica da regra do teto contemplava a ativação de um plano B, digamos assim, no caso de ruptura do teto. Afinal, os gatilhos estavam listados, ali, por alguma razão. Não poder acioná-los seria algo contrário ao próprio espírito da regra.

Mas essa interpretação não prevaleceu, e o governo levou à frente a PEC Emergencial. Ocorre que não trabalhou, politicamente, da melhor maneira possível, para fazer avançar a proposta, inclusive com eventual colaboração do Congresso para aprimorá-la. O risco de romper o teto, em 2020, com o estouro da crise da Covid-19 e a possibilidade de realizar gastos extra teto, por meio do Orçamento de Guerra (outra PEC, esta, sim, positiva), levou a PEC Emergencial ao segundo plano. Quando o assunto voltou ao topo da agenda de prioridades, no fim do ano passado e, mais fortemente, no início de 2021, veio de uma maneira torta.

O Executivo preconizou trocar a autorização do auxílio emergencial – gasto urgente e necessário – pela aprovação da PEC. Para isso, um artigo foi introduzido ao texto original, com regras específicas e valores máximos para o programa. Por outro lado, o Congresso aprovaria o plano fiscal do governo. Ocorre que o texto não era mais o original. Os gatilhos, que poderiam ser acionados por meio do rompimento da regra de ouro, no texto inicial, passaram a ficar exclusivamente vinculados, no caso da União, a uma regra nova: quando a despesa obrigatória ultrapassasse 95% da despesa primária total, ambas sujeitas ao teto. Só que, como mostramos em trabalhos da IFI, isso só ocorrerá em 2025, quando também o teto terá risco elevado de estourar.

O que, então, não resolveu a pressão por aumento de gastos?

Pode-se dizer que um tempo precioso foi jogado pela janela. Sem orçamento aprovado, essa discussão requereu capital político, articulação e sobrou pouco para discutir a LOA de 2021. O desejo de ampliar gastos não relacionados ao combate à Covid-19, dentro e fora do governo, se estabeleceu. O governo acabou aceitando negociar um espaço fiscal que nunca existiu. Isto é, permitiu que fossem feitas revisões baixistas nas despesas obrigatórias da LOA, o que abriu espaço para fixação de emendas voltadas a atender não apenas parlamentares, mas também a setores do Executivo. A IFI mostrou que o rombo no teto de gastos, na LOA aprovada, era de R$ 31,9 bilhões. Está publicado em Nota Técnica, de número 46.

Isto é, nem se aprovou uma reforma fiscal, nem se conseguiu planejar, minimamente, o Orçamento de 2021 para garantir o cumprimento do teto de gastos e as ações necessárias ao enfrentamento da pandemia. Na verdade, esse plano deveria ter sido concebido ainda no ano passado. Lá, a chamada Emenda do Orçamento de Guerra resolveu a questão das regras fiscais. Para 2021, o erro do governo foi imaginar um cenário distinto, para melhor, do que o de 2020. Técnicos da área econômica chegaram a dizer que era baixíssimo o risco de uma segunda onda da doença. Pois bem, agora estamos diante de uma situação em que tudo está sendo feito um pouco de improviso. Os créditos extraordinários estão saindo, mas certos programas, como o BEm, o próprio Auxílio Emergencial, o Pronampe etc são concebidos com meses de atraso.

A correção do Orçamento de 2021 foi feita por vetos e bloqueios (decreto de contingenciamento). No total, R$ 29,1 bilhões, pouco abaixo do que a IFI havia indicado. Mas, para preservar R$ 18,5 bilhões (de um total de R$ 29 bilhões das emendas de relator-geral, que incluem demandas do Executivo, vale reforçar), cortaram-se apenas R$ 10,5 bilhões nesta parte da LOA. Outros R$ 7,9 bilhões foram cortados das despesas discricionárias do Poder Executivo e mais R$ 1,4 bilhão nas emendas de comissão. Para completar, R$ 9,3 bilhões foram bloqueados das despesas do Executivo por decreto de contingenciamento.

Trocou-se, assim, o risco de romper o teto pelo risco de shutdown. Na verdade, esse processo de paralisação já está ocorrendo. Na educação, na saúde, no meio ambiente, nas relações exteriores. Vamos ter claro: o Executivo ficou com R$ 74,6 bilhões de gastos discricionários, o menor nível da série histórica. Não tem como dar certo. Se for preciso fazer desbloqueios, ao longo do ano, como o teto de gastos será cumprido? Talvez ocorra o seguinte: contratação de uma montanha de restos a pagar para 2022.

O arranjo feito – PEC Emergencial e Orçamento de 2021 – não resolve problemas estruturais, tampouco apaga os incêndios de curtíssimo prazo na área fiscal. Apenas joga um pouco de água na fervura. Sempre achei correto realizar gastos no bojo da pandemia por meio dos créditos extraordinários. Estão previstos na Constituição justamente para situações de imprevisibilidade e urgência. Mas faltou planejar. Faltou, sobretudo, gestão. Veja o caso das vacinas. Estamos muito atrasados. É vexatório, principalmente sabendo que o governo poderia ter se antecipado. Não foi por falta de dinheiro. O maior pecado cometido no campo fiscal, não canso de dizer, ainda é a falta de planejamento. Para quem não sabe onde quer chegar, todos os ventos acabam sendo desfavoráveis.

A avaliação do IFI é de que no ano que vem haverá uma margem fiscal maior para o governo. Como avalia o risco de essa margem não ser bem usada, já que é ano de eleição e ao que tudo indica teremos um país ainda com alto desemprego e baixo crescimento?

Em 2022, o teto terá folga, sim, mas por razões ruins. A inflação está sendo afetada pela taxa de câmbio, que reflete o risco em relação ao quadro político e fiscal. A pressão por gastos vai se repetir, registre-se. Se a inflação ficar mais alta, em junho (como deve ficar) quando comparada a dezembro, o teto subirá de elevador e as despesas, de escada. Na IFI, calculamos hoje uma folga no teto de R$ 38,9 bilhões para 2022. A novela de 2021 vai se repetir, mas em cima de um espaço real. Esta vai ser a diferença. A outra, é que estaremos em ano eleitoral. Não custa lembrar que a folga no teto não refletirá uma situação fiscal melhor, mas, sim, um baque inflacionário ligado a câmbio e commodities. Péssimo. A dívida estará acima de 90% do PIB e o déficit primário em três dígitos.

O PLDO para 2022 é irrealista. O governo parece ter optado por superestimar as despesas obrigatórias, como mostramos no Relatório de Acompanhamento Fiscal (RAF) de abril. Veja o caso da despesa previdenciária. A IFI projeta R$ 741,8 bilhões para o INSS, enquanto o PLDO indica R$ 762,9 bilhões. A evolução recente dessa fatia do gasto, as perspectivas para o salário mínimo e a taxa vegetativa de crescimento da previdência não indicam que o gasto ficará alto como indicado nas diretrizes orçamentárias propostas ao Congresso. É possível que, só neste gasto, o governo esteja com uma folga de cerca de R$ 20 bilhões.

No PLDO, dada a obrigatória inflada, o teto e as despesas sujeitas a ele estão projetadas exatamente no mesmo valor: R$ 1,6 trilhão. Esse é um sinal de que o espaço seria igual a zero. Mas não é. Com projeções, a meu ver, mais adequadas aos olhos de hoje, a folga é de R$ 38,9 bilhões, como mencionei. Isso vai despertar o desejo por aumento de gastos, em ano eleitoral, e por reajustes salariais para certas categorias. A situação fiscal, neste caso, vai piorar. Não é um cenário bom o que se pode desenhar hoje para o próximo ano, ainda que o déficit primário deva diminuir. O que está faltando é, nitidamente, um plano para o médio prazo. Como reequilibrar a dívida em proporção do PIB, com que medidas concretas, do lado da receita e da despesa: eis o desafio.

É otimista de que alguma reforma estrutural passe este ano e já comece a ajudar no equilíbrio das contas?

Não vejo isso como provável. A reforma tributária requer articulação pesada, profissional e bem-feita. A CPI da Covid-19 vai embaralhar o jogo, que já era difícil. As respostas à crise seguem lentas, sobretudo na vacinação, colocando o governo em xeque. Não vejo a força necessária, de um lado, para fazer avançar uma reforma tributária digna desse nome. De outro, é pouco claro qual o objetivo do governo nessa matéria. Fala-se em reforma fatiada. Sim, mas quais as fatias? Por onde começaria?

É preciso lembrar que o vetor da regressividade do sistema tributário também está crescendo no debate sobre o tema. Está claro que uma reforma ampla teria de atacar questões relacionadas à injustiça tributária, às desigualdades derivadas da má alocação de gastos tributários, hoje em cerca de 4% do PIB, sem mencionar os tópicos setoriais. Neste assunto, são várias as trincheiras. Não vejo avanço em boa parte delas, inclusive na federativa, onde há um “novelo fiscal” à parte, nos termos do professor Fernando Rezende, da FGV. De todo modo, é esperar para ver.

As outras agendas, como a da reforma administrativa, podem caminhar, mas também são pouco triviais. A IFI publicou, recentemente, o Estudo Especial nº 15, em que simulamos os efeitos do alongamento das carreiras dos servidores e da redução dos salários iniciais. O efeito de uma reforma relativamente modesta poderia chegar a R$ 128 bilhões em dez anos. É pouco, diante do desafio fiscal, mas ajudaria. A tarefa continua a ser a mesma: convicção sobre o que fazer e articulação política necessária para tanto. Como o modelo político do Brasil é muito concentrado no Executivo, note que todos os momentos de avanços mais ousados envolveram empenho direto da Presidência da República. Foi assim com Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer.

Pelos cálculos do IFI, comprimir despesas discricionárias para cumprir o teto parece ser uma prática que chegou ao limite. O que nos restará nos próximos anos para ajustar gasto/PIB?

É uma pergunta que precisará ser respondida pela política. O teto de gastos preconizava a contenção do crescimento da despesa e a sua redução como proporção do PIB, numa magnitude que, hoje está claro, não ocorrerá. O desafio é reformar o arcabouço fiscal, harmonizá-lo, recuperando a importância da meta de resultado primário com vistas à obtenção da sustentabilidade da dívida em prazo razoável de tempo. Cortar discricionárias – estamos vendo o caso do Orçamento de 2021 –, é uma estratégia falida. Em 2022, a folga no teto vai dar uma impressão errada de que isso teria sido superado. Uma quimera. Em 2023, os problemas serão idênticos sob esse aspecto.

O setor público perdeu o controle sobre a qualidade do gasto e sobre a necessidade de abrir espaço fiscal a gastos relacionados ao crescimento econômico e à redução de desigualdades, de maneira eficiente. Isso só será revertido com uma ampla reforma fiscal. É preciso adotar a prática da revisão periódica da despesa pública e reformular o plano plurianual (PPA), transformando-o numa ferramenta efetiva, e não em um apanhado de informações que pouco afetam a elaboração dos orçamentos e da política fiscal. O desafio é muito grande. E o lado da receita vai ter de colaborar com o ajuste fiscal também. Não vejo saída sem isso.

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Fonte: Conjuntura Econômica