Protelar revisão de gastos tributários é escolher ajuste fiscal iníquo

Artigos | 23/02/21

Consultor Jurídico, 23 de fevereiro de 2021

Por Élida Graziane Pinto

Ordenar prioridades é, sobretudo, gerir o tempo em que múltiplos eventos ocorrerão. Trata-se de distribuí-los, sob critérios materiais e formais, em sequência cronológica, na expectativa de lhes conferir alguma legitimidade racional.

No debate fiscal brasileiro, uma disfuncional agenda de ajuste tem pautado apenas o controle de despesas primárias, como se o primeiro (único, para alguns) problema a ser resolvido fosse o nível de gastos diretamente realizados pelo Estado na execução das políticas públicas.

O tamanho da Administração Pública deixou de ser um tema avaliado à luz das necessidades constitucionais e passou a ser questionado de forma maniqueísta na interface entre Estado e mercado. Quão menor o primeiro, supostamente mais eficiente seria a alocação de recursos pelo segundo na vida em sociedade.

Desde sua promulgação, a Constituição de 1988 tem sido acusada de ser fiscalmente insustentável. Esquecem-se os defensores do Estado mínimo que a desigualdade social brasileira reclama atuação governamental majorada em diversas dimensões substantivas, como saúde, educação e assistência social, precisamente para compensar o legado escravocrata ainda presente na baixa efetividade de direitos sociais no país.

Ora, os que querem minorar a despesa primária são os mesmos que querem preservar sua riqueza por meio das despesas financeiras tipicamente relacionadas à rolagem da dívida pública e, em especial, referidas à gestão da liquidez na política monetária, tanto quanto querem reduzir a tributação incidente sobre sua destacada capacidade contributiva. Em tempos pandêmicos, aludido conflito distributivo se revela ainda mais dramático.

Daí decorre o caráter unívoco e iníquo do ajuste fiscal em curso, porquanto seja feito sem concomitante reflexão acerca das opções de arrecadação (receitas tributárias, operações de crédito e respectivo custo de rolagem da dívida ou, ainda, estratégias de emissão monetária em tempos de calamidade e grande hiato do produto).

Embasado em diagnóstico seletivo acerca do suposto gigantismo do Estado brasileiro em face das competências que a Constituição lhe atribuiu, o mote da sua redução justificou a edição da Emenda 95/2016 e, antes dela, a persecução tão somente da meta de resultado primário.

Vale lembrar que a Lei de Responsabilidade Fiscal estabeleceu requisitos semelhantes para a geração tanto de renúncias fiscais, quanto de despesas obrigatórias de caráter continuado (respectivamente em seus artigos 14 e 17): avaliação de impacto nas metas fiscais e correspondentes medidas compensatórias. Não obstante isso, na LRF foram fixados limites imediatamente exigíveis apenas para as despesas de pessoal, bem como somente se tornou, de fato, vinculante apenas a meta de resultado primário. Mais de duas décadas depois da sua edição, ainda não foram editados os limites para as dívidas consolidada e mobiliária da União, tampouco há controle efetivo sobre os gastos tributários.

Obviamente, a ação governamental não se faz exclusivamente de despesas primárias. O ciclo orçamentário abrange, em igual medida, todas as receitas públicas, bem como as despesas financeiras. Ajustes fiscais seletivamente incidentes apenas sobre despesas primárias são iníquos, por revelarem uma franca opção pela redução do tamanho do Estado, sem correlata reflexão sobre alternativas menos gravosas à eficácia dos direitos fundamentais.

Diversas foram as regras que tentaram conter os incentivos tributários, a partir de limites temporais de vigência e avaliação de efetividade. Infelizmente, contudo, a realidade fática é a de uma persistente falta de ajuste sobre as renúncias fiscais.

Arrolamos, a seguir, os dispositivos de ajuste das renúncias fiscais solenemente ignorados e/ou esvaziados ao longo dos mais de trinta anos de vigência da nossa Constituição:

1) Previsões no texto permanente da CF/88:

“Artigo 155 […] XII — Cabe à lei complementar:
g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Artigo 156 […] — § 3º. Em relação ao imposto previsto no inciso III [ISSQN] do 
caput deste artigo, cabe à lei complementar:
III. regular a forma e as condições como isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Artigo 195 […] — § 3º. A pessoa jurídica em débito com o sistema da seguridade social, como estabelecido em lei, não poderá contratar com o poder público nem dele receber benefícios ou incentivos fiscais ou creditícios”.

2) Previsões no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:

“Artigo 41 — Os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios reavaliarão todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes Legislativos respectivos as medidas cabíveis.
§ 1º. Considerar-se-ão revogados após dois anos, a partir da data da promulgação da Constituição, os incentivos que não forem confirmados por lei.

[…] § 3º. Os incentivos concedidos por convênio entre Estados, celebrados nos termos do artigo 23, § 6º, da Constituição de 1967 , com a redação da Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1969, também deverão ser reavaliados e reconfirmados nos prazos deste artigo”.

3) Previsões na Lei de Responsabilidade Fiscal:

“Artigo 1o[…] — § 1o. A responsabilidade na gestão fiscal pressupõe a ação planejada e transparente, em que se previnem riscos e corrigem desvios capazes de afetar o equilíbrio das contas públicas, mediante o cumprimento de metas de resultados entre receitas e despesas e a obediência a limites e condições no que tange a renúncia de receita, geração de despesas com pessoal, da seguridade social e outras, dívidas consolidada e mobiliária, operações de crédito, inclusive por antecipação de receita, concessão de garantia e inscrição em restos a pagar.
Artigo 14 — A concessão ou ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita deverá estar acompanhada de estimativa do impacto orçamentário-financeiro no exercício em que deva iniciar sua vigência e nos dois seguintes, atender ao disposto na lei de diretrizes orçamentárias e a pelo menos uma das seguintes condições:
I. demonstração pelo proponente de que a renúncia foi considerada na estimativa de receita da lei orçamentária, na forma do artigo 12, e de que não afetará as metas de resultados fiscais previstas no anexo próprio da lei de diretrizes orçamentárias;

II. estar acompanhada de medidas de compensação, no período mencionado no caput, por meio do aumento de receita, proveniente da elevação de alíquotas, ampliação da base de cálculo, majoração ou criação de tributo ou contribuição […]”.

4) Previsões na Emenda 95/2016:

ADCT — “Artigo 109 — […] § 2º. Adicionalmente ao disposto no caput, no caso de descumprimento do limite de que trata o inciso I do caput do artigo 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, ficam vedadas:
[…] II. a concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária.
[…] § 4º. As vedações previstas neste artigo aplicam-se também a proposições legislativas”.

ADCT — “Artigo 113 — A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro”.

5) Previsões na LDO/2019 (Lei 13.707/2018):

“Artigo 21 — […] § 3º. O chefe do Poder Executivo encaminhará ao Congresso Nacional plano de revisão de despesas e receitas, inclusive de incentivos ou benefícios de natureza financeira, tributária ou creditícia, para o período de 2019 a 2022, acompanhado das correspondentes proposições legislativas e das estimativas dos respectivos impactos financeiros anuais.
§ 4º. O plano de que trata o § 3º e as correspondentes proposições legislativas:
[…] III. no que tange às receitas:
a) priorizarão medidas voltadas à redução de renúncia e ao aumento de receita, ao combate à sonegação, à progressividade tributária e à recuperação de créditos tributários; e
b) estabelecerão, em relação aos benefícios tributários:
1. prazo de vigência para cada benefício; e
2. cronograma de redução de cada benefício, de modo que a renúncia total da receita, no prazo de 10 (dez) anos, não ultrapasse 2% (dois por cento) do produto interno bruto.
Artigo 116 — Somente será aprovado o projeto de lei ou editada a medida provisória que institua ou altere receita pública quando acompanhado da correspondente demonstração da estimativa do impacto na arrecadação, devidamente justificada.
§ 1º. Ficam vedadas a concessão e a ampliação de incentivos ou benefícios de natureza financeira, tributária, creditícia ou patrimonial, exceto a prorrogação por prazo não superior a cinco anos, desde que o montante do incentivo ou benefício prorrogado seja reduzido em pelo menos dez por cento ao ano e que o respectivo ato seja acompanhado dos objetivos, metas e indicadores relativos à política pública fomentada, bem como da indicação do órgão responsável pela supervisão, acompanhamento e avaliação.

§ 2º. Os projetos de lei aprovados ou as medidas provisórias que vinculem receitas deverão conter cláusula de vigência de, no máximo, cinco anos […]”.

6) Previsões na LDO/2020 (Lei 13.898/2019)

“Artigo 116. Somente será aprovado o projeto de lei ou editada a medida provisória que institua ou altere receita pública quando acompanhado da correspondente demonstração da estimativa do impacto na arrecadação, devidamente justificada.
§ 1º. As proposições de autoria do Poder Executivo federal que concedam ou ampliem benefícios tributários deverão estar acompanhadas de avaliação do Ministério da Economia quanto ao mérito e aos objetivos pretendidos, bem como da estimativa do impacto orçamentário e financeiro, e de sua compensação, de acordo com as condições previstas no artigo 14 da Lei Complementar nº 101, de 2000 — Lei de Responsabilidade Fiscal.
§ 2º. Deverão conter cláusula de vigência de, no máximo, cinco anos, os projetos de lei aprovados ou as medidas provisórias que:
I. vinculem receitas; ou
II. concedam, ampliem ou renovem benefícios de natureza tributária.
[…]

Artigo 117 — O presidente da República encaminhará ao Congresso Nacional, em 2020, plano de revisão de benefícios tributários com previsão de redução anual equivalente a cinco décimos por cento do Produto Interno Bruto — PIB até 2022″ (Revogado pela Lei nº 13.983, de 2020).

7) Previsões na LC 173/2020 alterando LC 101/2020:

“Artigo 65 — […]
§ 1º. Na ocorrência de calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional, nos termos de decreto legislativo, em parte ou na integralidade do território nacional e enquanto perdurar a situação, além do previsto nos inciso I e II do caput:

[…] III. serão afastadas as condições e as vedações previstas nos artigos 14, 16 e 17 desta lei complementar, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública […]”.

8) Previsões na EC 106/2020 (Orçamento de Guerra):

“Artigo 3º — Desde que não impliquem despesa permanente, as proposições legislativas e os atos do Poder Executivo com propósito exclusivo de enfrentar a calamidade e suas consequências sociais e econômicas, com vigência e efeitos restritos à sua duração, ficam dispensados da observância das limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita.
Parágrafo único. Durante a vigência da calamidade pública nacional de que trata o artigo 1º desta Emenda Constitucional, não se aplica o disposto no § 3º do artigo 195 da Constituição Federal.

9) Previsões na LC 178/2021 alterando LC 159/2017:

Artigo 2º — […] § 1º. Das leis ou atos referidos no caput deverá decorrer, observados os termos do regulamento, a implementação das seguintes medidas:
[…] III. a redução de pelo menos 20% dos incentivos e benefícios fiscais ou financeiro-fiscais dos quais decorram renúncias de receitas, observado o § 3º deste artigo;
[…] § 3º. O disposto no inciso III do § 1º:
[…] II. será implementado nos três primeiros anos do regime de recuperação fiscal, à proporção de, no mínimo, um terço ao ano […].
Artigo 7º-D — Durante a vigência do regime de recuperação fiscal, os titulares de poderes e órgãos autônomos, das Secretarias de Estado e das entidades da administração indireta deverão encaminhar ao Conselho de Supervisão do regime de recuperação fiscal relatórios mensais contendo, no mínimo, informações sobre:
[…] VIII. os incentivos de natureza tributária concedidos, renovados ou ampliados;

IX. as alterações de alíquotas ou bases de cálculo de tributos; […]”.

10) Previsões nas PECs 186/2019 e 188/2019:

“Artigo 167 — São vedados:
[…] XII [XIV na PEC 188]. a criação, ampliação ou renovação de benefício ou incentivo de natureza tributária pela União, se o montante anual correspondente aos benefícios ou incentivos de natureza tributária superar 2 p.p. (dois pontos percentuais) do Produto Interno Bruto no demonstrativo a que se refere o § 6° do artigo 165 da Constituição Federal.
§ 6° [§10 na PEC 188]. Incentivos ou benefícios de natureza tributária, creditícia e financeira serão reavaliados, no máximo, a cada quatro anos, observadas as seguintes diretrizes:
I. análise da efetividade, proporcionalidade e focalização;
II. combate às desigualdades regionais; e
III. publicidade do resultado das análises […].
Artigo 167-A — No exercício para o qual seja aprovado ou realizada, com base no inciso III do artigo 167 da Constituição Federal, volume de operações de crédito que excedam à despesa de capital, serão automaticamente acionados mecanismos de estabilização e ajuste fiscal sendo vedadas ao Poder Executivo, aos órgãos do Poder Judiciário, aos órgãos do Poder Legislativo, ao Ministério Público da União, ao Conselho Nacional do Ministério Público e a Defensoria Pública da União, todos integrantes dos orçamentos fiscal e da Seguridade Social da União:
[…] XI. concessão ou a ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária […].
Artigo 6° [artigo 9º na PEC 188] — […]

Parágrafo único [§4º na PEC 188]. O disposto no § 6° [§10 na PEC 188] do artigo 167 da Constituição Federal será aplicado aos incentivos e benefícios de natureza tributária, creditícia ou financeira já existentes, observado corno termo inicial a data de promulgação desta emenda constitucional”.

O rol normativo acima demonstra a existência de inúmeras tentativas superpostas de conter a concessão irracional de renúncias fiscais, que minam a capacidade arrecadatória do Estado, sem efetiva comprovação do alcance das suas alegadas finalidades de fomento ao mercado e ao terceiro setor.

Em 2021, qualquer proposta de ajuste fiscal que ignore o reiterado descumprimento das regras anteriores sobre a necessidade de maior controle e revisão dos gastos tributários — com o intuito de buscar conter apenas as despesas primárias — merece ser impugnada como hipócrita.

Simples assim: ajuste nas contas públicas que não reveja, prioritariamente, as renúncias fiscais é escolha pela redução do tamanho do Estado, escolha essa que reproduz desigualdades históricas e afronta o pacto constitucional civilizatório de 1988.

Em suma, manter renúncias fiscais inefetivas e perenes, enquanto são reduzidas desproporcionalmente despesas primárias é opção deliberada por negar custeio suficiente aos direitos fundamentais.

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